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Brasil, país do vôlei?

Depois da espetacular e surpreendente vitória da seleção feminina de voleibol , das pratas dos comandados de Bernardinho e de Alison/Emanuel e do bronze de Juliana/Larissa, a frase mais repetida nas redes sociais foi “Brasil, o país do vôlei”. Ninguém nasce dando manchete, tampouco se compra enxoval com as cores do Sollys/Osasco nem noites são consumidas em bares, salas e casamentos com discussões sobre um peixinho do líbero como se faz com um impedimento não marcado em um jogo de 1976.

O Brasil ainda é o país do futebol e será por muito tempo. Não há nada que se compare em termos esportivos, culturais e sociais ao que o futebol significa, movimenta, desperta e mobiliza. Jamais o Brasil (ou um Estado ou uma cidade do tamanho de São Paulo, para não correr o risco de exagerar) irá parar porque o time do Sesi ou do Rexona disputa a final do Sul-Americano contra um time argentino e monopolizar duas torcidas ensandecidas, uma torcendo contra e outra a favor.

Deixemos, portanto, o esporte de Mano e Neymar de lado e tentemos utilizar o vôlei como referência para tentar enxergar saídas (e entradas) para o esporte competitivo de alto nível no Brasil. Não vou me ater a detalhes amplamente divulgados e conhecidos sobre a iniciativa de Nuzman, a organização da CBV etc. Há seis edições dos Jogos Olímpicos consecutivas que o voleibol garante medalhas para o País. E de quatro em quatro anos, aponta-se para ele quando se quer referências para os demais esportes.

Não é uma receita simples de um ou dois ingredientes, como também não é um modelo que pode ser copiado na íntegra. No entanto, vários exemplos podem ser seguidos para que possamos ter modalidades mais fortes e uma representatividade olímpica mais significativa no futuro. Não para 2016, algo utópico que serviu apenas de justificativa para investimentos nos Jogos.

Este ensaio superficial nada tem a ver com construir uma mentalidade esportiva nacional, algo muito mais profundo, que envolve políticas públicas que não serão levadas a sério ou a cabo em médio prazo. Portanto, nos concentremos na explanação em formar modalidades competitivas. Para isso, não precisamos colocar um cavalo de alças em cada casa para que tenhamos uma ginástica olímpica forte. A questão aqui é formar um grupo de excelência em nível internacional. Vamos a alguns pontos cruciais.

O vôlei é o que é hoje, por conta de um apoio fundamental e de inquestionável significado para seu sucesso: a televisão. No esporte profissional, sem exposição na mídia televisiva (as outras não tem o peso sequer dos bósons para justificar um investimento), não há portas de patrocinadores que se abram. E o que fazer para que as emissoras da rede aberta abracem a ideia de transmitir competições de atletismo, polo aquático ou luta greco-romana? Num mundo neoliberal é difícil usar termos como pacto, acordo ou cessão, quanto menos imposição. Mas sem a TV, não há como seguir a discussão, vamos falar de novelas e realities shows.

É preciso também paciência, pois um espelho não se faz do dia para a noite. Os jovens atletas e a população que assistirá as transmissões e mandará o recado aos patrocinadores: nós gostamos disso, invista que nós daremos o retorno que você deseja precisam dessas referências vitoriosas para dar continuidade ao projeto. O vôlei começou com a Geração de Prata na década de 80; os garotos de 10 anos que eram fãs de Willian, Amauri e Renan viraram jogadores nos anos 90; assim como os do início dos anos 2000 só começaram a praticar o esporte porque viram Tande, Negrão e Maurício ganhando a medalha em Barcelona; e assim é a história da última prata no masculino. Trinta anos de cultura voleibolística.

Depois, é preciso ter campeonatos nacionais fortes que proporcionem a disputa em alto nível e equilibrada para os atletas de ponta. Ter um ou outro expoente que precisa ir para o exterior jogar e que se apresente eventualmente para compor com atletas muito abaixo tecnicamente e virgens em experiências internacionais de embate (jogar uma Olimpíada não acrescenta nada diante da possibilidade de treinar e jogar com e contra os melhores do mundo), não irá fazer uma modalidade forte.
Intercâmbio internacional. O calendário internacional do voleibol permite que os melhores do mundo se enfrentem várias vezes ao ano. Liga Mundial, Grand Prix, Copa do Mundo, Montreux Masters, Copa América, Copa Pan-Americana, Campeonato Mundial, Copa dos Campeões, torneios na China, na Rússia...

Remuneração alta. Sem hipocrisia, o atleta de ponta precisa ser bem remunerado. Não é possível que hoje em dia ele se divida entre estudos, trabalho e treinamento. O esporte escolhido precisa ser a profissão que ele desempenhará por 15, 20 anos e essa dedicação precisa lhe render mensalmente uma remuneração que lhe permita não se arrepender por estar dedicando o período produtivo de sua vida com tanta entrega. E, com os extras (prêmios, cessão de imagem etc.), vislumbre um pé de meia digno das conquistas que ele dará ao país e a seus mantenedores.

Não é possível dizer que um esporte é forte por conta de um expoente genial. Guga apareceu e o tênis foi um coadjuvante, Diogo Silva e Natalia Falavigna não fazem o taekowndo forte. A competição, a rivalidade entre os príncipes é que forma o rei.

Não podemos achar que um centro de treinamento que privilegie meia dúzia de talentos formará um grupo campeão. É necessário ter clubes bem aparelhados, técnicos altamente capacitados, outros profissionais igualmente de nível e com disponibilidade para se dedicar integralmente ao desafio de fazer campeões. O vôlei tem várias equipes disputantes da Superliga, que têm essas condições físicas e humanas para oferecer aos grandes atletas, assim como às grandes promessas. A oportunidade (de qualidade!) é oferecida a uma quantidade muito maior.

Creio que esses sejam alguns exemplos válidos, porém se me perguntarem sobre prioridades, creio que transformar quase 60% de brasileiros sedentários em indivíduos saudáveis e construir gerações futuras com o hábito da prática da atividade física regular é mais urgente e seria muito mais interessante para construir um país que, com isso no inconsciente coletivo, poderia num médio prazo se dedicar a apenas conduzir os talentos aos seus caminhos naturais. Mas isso é função do Estado, um Estado que cada vez mais lava as mãos com o sabonete da livre iniciativa.

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