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Negros e negras no voleibol olímpico brasileiro – uma análise sociodesportiva




Negros e negras no voleibol olímpico brasileiro – uma análise sociodesportiva

Carlos Eduardo Bizzocchi



Este breve ensaio não pretende de maneira nenhuma esgotar o assunto tampouco se aprofundar num tema que exigiria conhecimentos mais sólidos sobre sociologia ou etnografia e também uma pesquisa mais ampla. Ele é, de certo modo, um convite à discussão sobre o preconceito racial e sobre o efetivo papel inclusivo do esporte.

O futebol brasileiro começou a romper a barreira da exclusão racial já na década de 1920 e, em pouco tempo, várias agremiações com negros e brancos dividiam espaço nos campos e espaços públicos. Na Copa do Mundo de 1954, a divisão étnica entre os titulares era quase meio a meio. Enquanto isso, o voleibol do país fechava-se dentro de clubes tradicionais, redutos conservadores e particulares, sob regimentos internos ainda impregnados do preconceito racial sobrevivente de uma abolição da escravatura que completava pouco mais de meio século.

Aceito como modalidade olímpica apenas na década de 1960, foi disputado pela primeira vez em Tóquio, em 1964. Desde então, a participação na competição passou a ser a principal aspiração do atleta de alto rendimento que se dedicava ao vôlei, mais do que nos campeonatos mundiais que eram disputados desde 1949 entre os homens e 1952 entre as mulheres.

Assim, para o presente estudo foi realizado um levantamento da participação de atletas negros brasileiros nos dois gêneros nas seleções que disputaram os Jogos Olímpicos. Não foram incluídos na relação alguns indivíduos que estão entre pardos e brancos ou que não têm características predominantemente da raça negra, por uma simples razão, o preconceito racial, pelo menos no Brasil – e predominantemente para com homens pretos ou pardos –, está ligado muito mais à aparência do que a uma classificação étnica. Ou seja, o negro que “nem parece tão negro” – em especial o craque – é percebido hipocritamente como alguém passível de inclusão, como se o talento fosse um agente “alforriador”. Por esta razão, fiz a opção por não incluir alguns jogadores, apesar de poderem, não sei, ter ascendência negra.

A escolha pelas seleções olímpicas foi também um critério arbitrário para representar o auge da carreira para atletas que se dedicam a alcançar o nível mais alto de desempenho esportivo e ao qual só conseguem chegar aqueles que têm oportunidades reais e de treinamento de qualidade durante a trajetória esportiva.

O primeiro negro a jogar pela seleção foi José Oswaldo Fonseca Marcelino, hoje com 69 anos. Foram 186 jogos defendendo o Brasil em vários torneios, inclusive nos Jogos Olímpicos de Munique de 1972. Curiosamente, José Oswaldo não era conhecido por seu nome de batismo, mas pelo apelido. Negrelli – assim mesmo, como se fosse um sobrenome italiano – jogava pelo Santos Futebol Clube, onde era chamado, não apenas por sua habilidade, de Pelé do Vôlei.

Passaram-se quatro edições olímpicas para que pudéssemos ver outro representante da raça negra integrar a equipe masculina. Em 1988, Bocão (Wágner Antônio da Rocha) tornava-se, ainda juvenil, o segundo negro a ascender ao evento máximo do esporte. Ou seja, em sete Olimpíadas, apenas dois negros haviam conseguido fazer parte do elenco.

A equipe feminina fez sua estreia em Moscou, em 1980, mas foi apenas em Los Angeles, quatro anos depois, que uma negra fez parte do grupo de 12 atletas. Eliani tornou-se a primeira voleibolista brasileira negra a disputar uma Olimpíada. Alguns anos depois tornou-se atriz e é hoje conhecida como Lica Oliveira. Em 1988, Eliani disputaria a competição pela segunda vez, desta vez em companhia de Márcia Fu (Márcia Regina Cunha), na época com a mesma idade de Bocão.

A aparição de Márcia Fu e Bocão, ambos então com 19 anos, embasa uma das principais justificativas para o início de uma maior representativa da negritude nas seleções. A facilitação de acesso ao voleibol às camadas mais pobres se dá, num primeiro momento, com o impulsionamento da modalidade na década de 1980, graças à visibilidade proporcionada pela televisão aberta das conquistas da chamada “geração de prata” em 1982 e 1984.  O ouro olímpico em Barcelona e a manutenção do Brasil entre as grandes potências mundiais do voleibol nos dois gêneros consolidaria a chegada do esporte à realidade das populações até então alijadas do acesso à prática, ainda que recreativa.

Faltava, no entanto, a facilitação à prática competitiva. Há até bem pouco tempo, alguns dos clubes que tinham equipes federadas de voleibol não aceitavam negros em suas categorias de base ou adultas e, mesmo aqueles que abriam suas portas, limitavam o trânsito desses atletas apenas ao ginásio, impedindo-os de frequentar outras dependências de uso habitual dos associados, principalmente vestiários e recintos de alimentação. As vitórias das seleções nacionais, a massificação e o aumento expressivo do afluxo de crianças e jovens a clubes que pudessem oferecer a ascensão profissional fizeram com que essas instituições se flexibilizassem. E, mesmo que alguns ainda limitassem o número de militantes, era impossível fechar os olhos à natural demanda étnica cada vez mais diversificada.

A primeira dupla de negros iria aparecer no masculino somente em 1992. Jorge Édson e Janélson ajudaram o vôlei brasileiro a conquistar a primeira medalha de ouro da história. Foi nesta edição, no time feminino, que pela primeira vez a raça negra se viu representada no sexteto titular, com Márcia Fu e Hilma. Ao lado de Tina (Cristina Pacheco Lopes) e Fofão (Hélia Rogério de Souza), representavam um terço do grupo em Barcelona.

A seleção masculina só teria um titular negro em Atlanta-96, mesmo assim porque Carlão (Antônio Carlos Gouveia) foi cortado às vésperas dos Jogos e cedeu o lugar para Max e Pinha se revezarem até o time conquistar o quinto lugar. Neste ano, quatro homens negros fizeram parte da delegação, o maior número até hoje. A maior representação aconteceu em 2004 na equipe feminina, quando 50% das atletas eram negras.

O líbero Sérgio Dutra Santos, o Escadinha, seria o primeiro a receber a medalha de ouro como titular nos Jogos Olímpicos de Atenas em 2004, enquanto Fofão e Fabiana teriam esta oportunidade quatro anos depois em Pequim.

Em toda a história olímpica do voleibol, 14 homens e 16 mulheres negros vestiram a camisa brasileira. Estes números correspondem a 15,05% no masculino (de um total de 93 atletas em 14 edições) e 24,24%, no feminino (de 66 atletas em 9 torneios). Se analisarmos a questão da titularidade, o índice fica em 5,37% entre os homens e 13,63% entre as mulheres.

Esses dados corroboram indicadores sociais observados no país em pesquisas atuais diversas e podem servir como parâmetros imediatos de comparação e análise, apesar de termos de considerar contextos diferentes a cada período para conclusões mais fidedignas – mas que certamente seriam ainda mais contendentes se trouxéssemos a realidade dos anos 80 e 90 ou, imagine, o tempo de adolescência de Negrelli.

Se em 2018 o PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) apontou que 55,8% da população brasileira haviam se declarado preta ou parda, há uma participação desproporcional e excludente do negro no voleibol, assim como acontece em outros setores do mercado de trabalho. Se juntarmos a esta breve análise o contexto socioeconômico revelado em 2017 pelo IBGE de que dos 10% mais pobres da população brasileira, 78,5% eram negros, não podemos ignorar que o voleibol é um esporte seletivo e de acesso restrito a parcelas mais favorecidas da população. E quanto à relação entre titularidade e cor da pele, encontramos total concordância dos números levantados neste estudo com pesquisa realizada entre 500 empresas e apresentada em 2017 no Jornal Nacional, em que apenas 6% dos cargos de gerência e menos de 5% entre diretores e presidentes eram de pretos ou pardos.

Antes de apresentar a tabela com o número de atletas negros, em cada naipe, em todas as vezes em que houve representação, vale acrescentar que jamais as seleções foram dirigidas por técnicos negros nem tiveram (salvo confirmação em contrário, já que tempo para obter este tipo de informação) qualquer profissional pardo ou preto entre os membros das seleções olímpicas (exceto massagistas ou roupeiros).




1972
1984
1988
1992
1996
2000
2004
2008
2012
2016
Total
Masculino
1
0
1
2
4
2
2
3
2
3
20
Feminino
-
1
2
4
3
4
6
4
3
4
31
Total
1
1
3
6
7
6
8
7
5
7
51

Tabela 1 – Números de atletas negros em cada edição olímpica



O maior número de negras em comparação com os homens pode ser explicado por uma permissividade da cultura machista. Sempre houve no voleibol, especialmente o de clubes, uma flexibilização maior para aceitar a mulher negra no ambiente de convívio social entre atletas e associados. Mesmo que velado, o preconceito racial em relação à mulher é minimizado por força da cultura machista, sensual e escravocrata ainda predominante. Mulheres sempre foram mais bem aceitas na Casa Grande, mucamas ganhavam privilégios e agrados dos senhores e eram condescendentemente aceitas por privar senhoras e mocinhas brancas de trabalhos duros e indignos. E assim parece ter sido, para podermos compreender a diferença entre homens e mulheres, durante o processo de inclusão que ainda engatinha no voleibol.

A seguir a relação completa dos negros e negras que escreveram seus nomes nos registros olímpicos do voleibol brasileiro.



Masculino
Feminino
Negrelli (1972)
Eliani (1984 e 1988)
Bocão (1988)
Márcia Fu (1988, 1992 e 1996)
Jorge Édson (1992)
Hilma (1992 e 1996)
Janélson (1992)
Tina (1992)
Leandro (1996)
Fofão (1992, 1996, 2000, 2004 e 2008)
Pinha (1996)
Janina (2000)
Max (1996 e 2000)
Raquel (2000)
Gílson (1996)
Kátia (2000)
Kid (2000)
Valeskinha (2004 e 2008)
Escadinha (2004, 2008, 2012 e 2016)
Sassá (2004 e 2008)
Anderson (2004 e 2008)
Fabiana (2004, 2008, 2012 e 2016)
Samuel (2008)
Bia (2004)
Wallace (2012 e 2016)
Arlene (2004)
Lucarelli (2016)
Fê Garay (2012 e 2016)

Adenízia (2012 e 2016)

Juciely (2016)

Quadro 1 – Relação dos atletas negros e respectivas edições disputadas



As conclusões acerca deste estudo não podem ser mais aprofundadas do que o breve levantamento pode suscitar. No entanto, há indícios que não podem ser ignorados e merecem ser abordados a título de possíveis caminhos para pesquisas futuras.

Considerando que o basquete feminino nos Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996, tinha em seu elenco sete negras das 12 jogadoras e o time masculino campeão mundial em 1959 e bi em 1963 contava, em ambos, com dois atletas negros e que o atletismo já se orgulhava das duas medalhas de ouro olímpicas conquistadas por Adhemar Ferreira da Silva em 1952 e 1956, é inegável que o voleibol tinha um caráter mais elitista que outras modalidades. Assim como o tênis e a natação, os espaços de prática concentravam-se dentro dos clubes mais tradicionais e conservadores dos grandes centros e não se estendiam democraticamente a parcelas menos favorecidas da sociedade.

Outro fator a ser considerado é o fato de o voleibol ser um esporte de habilidades complexas e construídas, difícil de ser aprendido e bem jogado, o que exige do praticante uma base motora rica de vivências motoras básicas e combinadas que são oferecidas apenas àqueles que têm acesso a escolas que dispõem de aulas de educação física de qualidade. Além disso, a a população de baixa renda, dentro da qual a maioria negra esmagadora se encontra, é impedida de poder desfrutar do luxo de ser esportista numa fase da vida em que os jovens são obrigados a ingressar no mercado de trabalho, ainda que precariamente, para ajudar a compor a renda familiar. Diante de tal fato, a trajetória para que o atleta se desenvolva e possa, ao se transformar em profissional, sonhar com a seleção brasileira exige oportunidade, dedicação e assiduidade que poucos podem dispor, em especial os menos favorecidos.

Não há também fundamentação que sustente a expectativa de uma carreira esportiva sem clubes que incentivem a prática do voleibol com o objetivo de formação continuada. Os poucos que existem estão distantes das periferias das grandes capitais e inexistem nas cidades de médio e pequeno porte.

Da mesma forma que o adolescente negro e pobre abandona a escola, assim faz com o esporte, porque ambos acabam não cumprindo com a promessa de ascensão social que colocam à porta. Chegar à seleção brasileira é tão difícil ao negro quanto ser aceito em empresas de ponta. Ser titular então, como os números apresentados comprovam, é tão raro quanto ser promovido a cargos corporativos de diretoria. Tanto em quadra quanto no mercado, a chance é de 1 para 20 entre os homens.

É impossível não promover uma análise dos números aqui levantados e não traçar uma relação direta da realidade do voleibol com o contexto histórico-social brasileiro que pouco muda ao longo de sua história. Flagrantemente, o voleibol é apenas mais um exemplo de como as instituições reproduzem há décadas a estrutura social influenciada por séculos de discriminação socioeconômica contra a raça negra. Diante de todas essas condições, é inquestionável que uma imensa maioria deste país desigual e com graves problemas de acessibilidade a serviços básicos fica sem a mínima condição de alcançar sucesso num campo restrito a poucos privilegiados.

Como é comum no Brasil, muitas vezes o problema é minimizado com a exposição de histórias pessoais de superação, como se a sorte pudesse desconsiderar a regra e transformar a exceção em modelo a ser seguido, indisponível apenas aos indolentes e incapazes. Já é hora de admitir que quando Janélson, Jorge Édson, Escadinha, Lucarelli, Anderson, Wallace, Fofão, Valeskinha, Sassá, Fabiana, Fê Garay e Adenízia ouviram o hino nacional do mais alto degrau do pódio estavam ali não por causa do Brasil, mas apesar do Brasil.

Sem dúvida, os negros que chegaram às seleções olímpicas brasileiras de vôlei devem ser tratados como heróis, mas devem ser vistos também como sobreviventes. Só assim poderemos encarar o desafio de promover a real inclusão que o esporte promete, mas não cumpre como pode e deveria.


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