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O buraco negro do ensino superior



Há pouco tempo me envolvi numa discussão em que eu defendia que o acesso ao ensino superior promovido pelos últimos governos era uma falácia. A patrulha ideológica não me perdoou. A crítica, no entanto, não se dirigia exclusivamente à maior facilitação gerada pelos incentivos financeiros dos últimos governos da esquerda travestida tanto aos potenciais alunos ingressantes quanto à gula das escolas particulares. A mercantilização da educação ganhou dimensões incontroláveis a partir do final da década de 1980, quando as faculdades privadas começaram a se tornar centros universitários ou universidades e abarcaram um volume de alunos que, incentivados pela propaganda e pelas facilidades de acesso, ocuparam os bancos escolares recém-criados.

O produto vendido por essas escolas, no entanto, nunca ficou muito claro. Ele foi se moldando de acordo com as possibilidades de oferta imediata e à melodia do mercado – mercado este do qual a própria instituição escolar faz parte e está, portanto, sujeita a suas regras e pressões. Seria o diploma? Não poderia ser. O departamento de marketing não perderia a oportunidade de embutir na proposta a aura dourada da conquista pessoal e da ascensão social. Algo que estaria, certamente, fora da possibilidade de seu cumprimento, assim como se uma loja de departamento vendesse um liquidificador com a promessa de felicidade no lar. Mas, santa ingenuidade, é para isso que o marketing existe.

O produto do ensino superior a ser oferecido passou a ser descaradamente, em termos práticos, o sucesso profissional, a remuneração digna, a ocupação imediata. Ilusão que só poderia ser comprovada e submetida à prova depois de concluída toda a trajetória escolar. Até lá, o pagamento por ele já havia sido concluído.

Os vestibulares, passagens tão distantes da possibilidade de uma fatia social até então alijada do mundo acadêmico, deixaram de ser barreiras de seleção, para se tornar porteira aberta ao universo inédito para várias famílias socioeconomicamente menos favorecidas. “Felicidade, passei no vestibular. Mas a faculdade é particular”. Sem problemas, o governo alimenta as faculdades, estas oferecem financiamentos que serão pagos pelo próprio produto que será retirado da “loja” dentro de alguns anos. Contando com o ovo na galinha ao final do percurso e sem considerar os gastos extras da complementação da bolsa não integral, de material, refeições, transporte, vestimentas adequadas, o aluno não pensa na impossibilidade do cumprimento da promessa por parte do prestador de serviço, muito menos na chance de ele próprio não conseguir honrar com suas obrigações assinadas em contrato.
A dificuldade no octógono da sala de aula começa nas primeiras semanas. Toda a debilidade do ensino básico brasileiro se manifesta nas exigências superiores de leitura, interpretação e produção de textos, elaboração de argumentos básicos, reflexões ainda que superficiais sobre temas atuais e multidisciplinares, resolução de equações matemáticas primárias, operações baseadas em regra de três, entendimento de gráficos, quadros ou construções textuais irônicas ou de analogia simples. E o caminho pintado de rosa e iluminado torna-se um árduo e árido terreno que precisa ser percorrido sob a pressão da burocracia das provas bimestrais e dos trabalhos acadêmicos ininteligíveis.

Valendo-se, neste contexto, de uma frase do professor Eldar Shafir da Universidade de Princeton, “é como ensinar alguém a nadar e depois jogá-lo numa tempestade marítima”. A aprendizagem passa a ser o menos importante do processo, com a cabeça para fora da água, o aluno passa a movimentar braços e pernas na direção que ele acha ser a correta, rumo à colação de grau. Sem compreender que a essência do período que ele passa no banco escolar é o aprendizado, e sem o qual ele não conseguirá usufruir do produto que lhe foi prometido, ele procura cumprir a obrigação de fechar notas e passar de semestre, cumprir as dependências acumuladas, ainda que para isso precise adiar talvez em alguns meses a formatura.

A evasão e as desistências ocorrem em maior volume nos meses iniciais dos dois primeiros semestres. Endividados e precisando saldar o débito com o subemprego do qual buscava fugir no médio prazo ao entrar na faculdade, o aluno abandona o sonho e a disposição em estudar. Quase ninguém retoma o caminho. O produto não foi entregue, não ficou pronto e não cabe reclamação nos órgãos de defesa do consumidor.

O novo capítulo que vem sendo escrito pelas universidades pagas é a maximização do lucro. Baseada na diminuição dos gastos, a “loja” torna cada vez mais difícil a entrega do prometido. Em contrapartida, doura a embalagem. Com várias estratégias, diminui a carga horária, sobrepõe disciplinas e vale-se dos avanços da informática e da internet para, em vez de utilizá-las a favor da aprendizagem, afastar o aluno da sala de aula. Além da profusão dos cursos à distância que têm sua razão de ser a partir das especificidades de cada um e da oferta direcionada a alguns segmentos, outros sofrem a corrosão de suas estruturas com a busca desenfreada por transformar gradativamente os cursos presenciais em, no máximo, semipresenciais.

Os períodos de aula são abreviados. Disciplinas que antes tinham carga horária semanal de quatro aulas, hoje chegam a ter duas; as de duas tornaram-se semipresenciais, com encontros quinzenais; e estas passam gradativamente a ser oferecidas exclusivamente no ambiente virtual. E não falo de áreas em que o ensino à distância é perfeitamente adaptável, mas de áreas em que a atividade prática é própria e indispensável à profissão. Campos como o da licenciatura, da pedagogia e de áreas das ciências humanas e da saúde estão sendo sequestradas descaradamente para o ambiente virtual. Disciplinas de Prática de Ensino são oferecidas sem o professor orientador e – pasmem! – sem a prática.
As regras de mercado estão imperando sobre a qualidade do ensino e do produto final oferecido, sem que o rebanho se revolte – não há centros acadêmicos na maioria das instituições –, sem que haja qualquer mobilização discente ou docente. Professores acuados que precisam garantir seu sustento num mundo altamente competitivo e de reduzidas oportunidades, apesar de seu decrescente rendimento com a redução da carga horária; e alunos que enxergam uma facilitação interessante para cumprir o trajeto obrigatório, fazendo provas à distância, com consulta, com maiores chances de aprovação, e podendo ficar mais tempo em casa.

Não obstante, o mercado de trabalho que absorver qualquer profissional formado à distância cobrará dele habilidades sociais impossíveis de praticar no ambiente virtual. Só numa sala de aula, com a convivência com os não iguais é que a tolerância se desenvolve. As opiniões divergentes, a resolução de problemas coletivos, o treinamento da capacidade de ouvir, refletir e ponderar argumentações contrárias a seu ponto de vista é que forma o profissional e o capacita a exercer sua atividade, impossível de ser exercida num ambiente virtual. O mercado o absorverá e lhe cobrará rendimento num ambiente social dinâmico, pulsante, caótico, de interação, de olho no olho, em que as emoções estão à frente, ao lado e por trás das decisões, dos diálogos, dos conflitos. Esta carência de habilidades emocionais desenvolvidas é a maior reclamação dos empregadores hoje em dia, e as universidades estão tomando o caminho inverso na formação dos futuros empregados.

As facilidades do presente anestesiam a percepção do preço a ser pago no futuro. As facilidades para que o aluno se forme e abra espaço para novos calouros, sem que para isso seja preciso ampliar os campi, movimenta esta engrenagem da produção em massa do profissional, sob a cumplicidade cínica do mercado que o absorve por um preço mais baixo que o privilegiado formado sob melhores condições.

O profissional que está sendo oferecido à sociedade será cada vez menos capacitado a enfrentar as necessidades do mercado e as exigências de uma sociedade líquida – Salve, Bauman! Perde o egresso que não conseguirá competir com outros formandos que tiveram mais oportunidades anteriores, seja numa formação básica particular ou, ironicamente, numa universidade pública.

Reforça-se a desigualdade social com a falácia da oportunidade, a reprodução social presente desde o Império ganha nova maquiagem, sob a sombra tecnológica fantasiosa. O produto final é um engodo, a chance de migrar do subemprego para o prometido campo profissional é mínima para este maltratado jovem brasileiro que teve uma educação básica da pior qualidade e na universidade passou como uma mercadoria na esteira de uma fábrica para receber um carimbo com prazo de validade ao final do processo.

Por tudo isso o ensino superior é uma falácia. É uma falácia governamental desde o ensino fundamental, que não dá condições de o cidadão galgar os próximos degraus da formação escolar idealizada. É uma falácia do sistema que o integra ao mercado para suprir uma demanda de mão de obra barata e sem qualidade nem projeção de carreira. É uma falácia na própria formação educacional, quando não o faz um indivíduo crítico desde o início, quando não o capacita a compreender, refletir e modificar a realidade desigual e quando vende um produto enganoso de igualdade social e econômica. É uma falácia, ainda, no momento em que o insere incompetente na realidade competitiva do mercado de trabalho, tal qual um carro com dois pneus furados no grid de largada de uma corrida.

O valor do produto adquirido será zero para o egresso e o preço será por demais oneroso para toda a sociedade. O lucro – real e oculto – das “fábricas”, todavia, continuará exorbitante. Some-se a tudo isso a indiferença e a dissimulação do poder público que aprova e multiplica cursos e formandos a generosas fornadas. As chances de evolução de tudo e de todos – desde a pessoal quanto a da nação – diminui consideravelmente e os horizontes estreitam-se a ponto de se tornarem imprevisíveis com a política educacional de favorecimentos e falácias.

A solução não é novidade: reforma do ensino básico, para que, ao chegar na universidade, o aluno possa adquirir conhecimentos compatíveis com sua capacidade e necessidade e, assim, competir em igualdade de condições no mercado de trabalho e escolher seus caminhos. Uma reforma que estruture conteúdos, entrelace áreas e competências e forme um cidadão crítico, transformador da realidade e que não se deixe enganar por ofertas enganosas. E uma rede particular de ensino que entre em sintonia com o mercado, mas não se venda a ele, e que regurgite a sanha pelo lucro e priorize sua missão e função com o tomador de serviço, a sociedade e o país.

A reestruturação da formação e do plano de carreira do professor universitário também é um dos alicerces desta empreitada, assim como outras questões paralelas, como o devido reconhecimento e respeito às regras de contratação. Mas isto é assunto para outro post.

Depois de um comentário recebido no Facebook, resolvi fazer um adendo ao texto:

Falo em nome daqueles que não conseguem romper a barreira das dificuldades que lhes são impostas. Pessoas lutadoras e que superam as forças ocultas escrevem a história com suas próprias mãos, independentemente das dificuldades. Esses não são a regra, mas a exceção. A grande fatia dos enganados fica pelo caminho. Ora, dirão alguns, assim é a vida. Mas não pode continuar sendo assim apenas para alguns. Os bons sempre se destacaram, mas é preciso que mais tenham chances reais para isso.

Comentários

  1. lendo e relendo este texto, não encontro qualquer ponto em que discorde. Os anos passam e a educação piora. O talento e empenho de poucos, que descobertos, vão utilizá-los em outros países porque aqui não são valorizados.

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    Respostas
    1. Mas um dia a gente chega no cerne do problema, a educação básica, Eliane. E aí o ensino médio e o superior vão ter de se pautar numa maior consciência da geração que vem sendo formada! Abraço

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