Pular para o conteúdo principal

Virando as costas

O voleibol brasileiro nunca havia ganho um título olímpico, um jovem treinador dirigiu a campanha invicta em Barcelona e deu ao país o ouro que parecia impossível. Anos depois ele assumiu a seleção feminina e, nos Jogos Olímpicos de Pequim, comandou as meninas até então estigmatizadas como amarelonas, transformando-as em douradas pela primeira vez. Não bastasse, conquistou o bicampeonato quatro anos depois. O Brasil é hoje considerado uma das grandes potências internacionais da modalidade. Este sucesso tem várias assinaturas, mas a de José Roberto Guimarães é uma das mais significativas.

Dois anos atrás, decidiu investir num projeto de formação de atletas em Barueri. Reuniu um elenco de jovens jogadoras que haviam participado de seleções de base e passou a treiná-las com o objetivo de contribuir para a renovação do voleibol feminino. Não poderia haver melhor oportunidade para elas e para o voleibol nacional: treinar com o técnico da seleção brasileira e com sua competente comissão técnica.

O time surpreendeu todos e foi campeão paulista. Zé Roberto conseguiu revelar novos talentos e apresentar jovens atletas que podem continuar a escrever a história da modalidade. Num cenário em que se duvidava que o país pudesse se renovar, Zé Roberto acende a luz no fim do túnel. Eis que emergem Karina, Kisy, Kênia, Lorena, Lorrayna, Nyeme, Jack, Maira, Diana.

Numa perspectiva empresarial, tal resultado deveria garantir um aporte substancial de investimento, uma promoção a toda a equipe envolvida no sucesso da empreitada, um plano de publicidade para difundir a realização, uma divulgação ampla do trabalho de modo a expandir a iniciativa a outros interessados em abraçar ideia tão valiosa. Qual o quê! Por estas bandas, nada disso importa. Num país sem estrutura esportiva nem sustentação de financiamento, até mesmo um projeto deste porte e importância, e com Zé Roberto à frente, é desconsiderado. Mais que isso, ignorado.

Com dificuldades que atravessaram a temporada, o São Paulo F.C. / Barueri chega à reta final da Superliga sem dinheiro para pagar as contas. Depois de uma campanha surpreendente com vitórias ou enfrentamentos de igual para igual contra algumas das principais equipes, montadas com mais verba e com várias jogadoras medalhistas olímpicas e estrangeiras titulares das seleções de seus países, a temporada termina com Zé Roberto bancando todos os custos de manutenção da equipe.

Abandonado pelo São Paulo Futebol Clube (apesar de contrato firmado), o treinador precisa tirar do próprio bolso a receita para pagar salários, despesas gerais e até alimentação do grupo. Em vez de o voleibol e todos que ganharam – de um modo ou de outro – em cima das conquistas retribuírem tudo que Zé Roberto fez por eles, o treinador precisa recorrer ao que o voleibol lhe deu para continuar dando ao próprio voleibol.

Se a modalidade mais vencedora do país não tem o reconhecimento devido por uma iniciativa vencedora como esta e se Zé Roberto não tem respaldo para desenvolver um trabalho de excelência de formação de talentos, o que mais podemos esperar em termos de políticas de incentivo ao esporte? O que serão de todas as pessoas menos reconhecidas que pretendem empreender boas ideias no esporte? Quem pedirá desculpas a Zé Roberto?

Comentários

  1. Brasil não merece um profissional como José Roberto. Um herói. Este projeto é o folego que o voleibol brasileiro precisa. País que não valoriza o esporte, exceto o futebol masculino. Depois querem exigir medalhas olímpicas.

    ResponderExcluir
  2. Uma vergonha esse País,a classe política e empresarial não tem compromisso com oque e bom para o Brasil,uma pena,ainda reclamam de Cuba.

    ResponderExcluir
  3. Tudo isso é lamentável.
    Nosso esporte sobrevive a custa de pouquíssimos profissionais que amam o que fazem.
    Nada mudou.

    ResponderExcluir
  4. Nada acontece por acaso. O " Zé do Ouro" é um caso de sucesso construído pelas competências e valores que ele foi adquirindo ao longo da vida e hoje é um exemplo a ser seguido para todos aqueles que desejam fazer uma história de vida fantástica.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. É um desestímulo aos possíveis parceiros e investidores do esporte. Não temos cultura esportiva, temos cultura de "torcida de futebol" ...

      Excluir
  5. Poxaaaa!!! É muito triste ver um esporte de tanta grandeza e um Mega profissional ser desvalorizado desta forma!!!!
    Zé, por eles eu peço desculpas.... E com uma imensa dor no coração 😔😔😔
    Força Vôlei Brasil!!! Zé, vc sempre será nosso mestre dos mestres!!!!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. O São Paulo FC começou a pagar o que deve ao Zé Roberto, mas mesmo assim é inacreditável que isso aconteça tão frequentemente no voleibol brasileiro. Veja o Taubaté...

      Excluir
  6. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  7. Uma incrível injustiça. Tive a sorte de conhecer Zé Roberto e sua comissão técnica. Excelentes profissionais que dão orgulho ao esporte americano.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Fotia, o São Paulo FC começou a pagar o que deve ao Zé Roberto, mas mesmo assim é inacreditável que isso aconteça tão frequentemente no esporte.

      Excluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Negros e negras no voleibol olímpico brasileiro – uma análise sociodesportiva

Negros e negras no voleibol olímpico brasileiro – uma análise sociodesportiva Carlos Eduardo Bizzocchi Este breve ensaio não pretende de maneira nenhuma esgotar o assunto tampouco se aprofundar num tema que exigiria conhecimentos mais sólidos sobre sociologia ou etnografia e também uma pesquisa mais ampla. Ele é, de certo modo, um convite à discussão sobre o preconceito racial e sobre o efetivo papel inclusivo do esporte. O futebol brasileiro começou a romper a barreira da exclusão racial já na década de 1920 e, em pouco tempo, várias agremiações com negros e brancos dividiam espaço nos campos e espaços públicos. Na Copa do Mundo de 1954, a divisão étnica entre os titulares era quase meio a meio. Enquanto isso, o voleibol do país fechava-se dentro de clubes tradicionais, redutos conservadores e particulares, sob regimentos internos ainda impregnados do preconceito racial sobrevivente de uma abolição da escravatura que completava pouco mais de meio século. Aceito

Coração e competência

Crédito foto: CBV A seleção brasileira de vôlei dispensou a calculadora e fez as duas melhores partidas do Grand Prix na última sexta-feira (21) e, principalmente, ontem (23). Enquanto muita gente fazia contas e duvidava da capacidade de jogadoras e comissão técnica, elas mostraram que ainda há lenha para queimar debaixo da brasa que sobrou sob as cinzas da Rio-2016. Duas condições interdependentes do vôlei serviram para impulsionar a equipe: quem não é bom em determinado fundamento precisa criar sua identidade em outro; e não dá para ser competitivo com um fundamento que esteja abaixo do aceitável. O sistema defensivo se aprimorou na defesa e o contra-ataque contou com uma dose reforçada de paciência e malícia, enquanto a recepção, que não é um primor, comportou-se dentro de um nível aceitável e não permitiu que o adversário se valesse de tal fragilidade. Com um rendimento invejável no bloqueio, as comandadas de José Roberto Guimarães se superaram contr

O fator T

O fator T T de Tiffany, de transexual, de testosterona Apesar do recesso de fim de ano, a Superliga feminina de vôlei continuou nas manchetes. Nos dois últimos jogos, em que defendeu o Vôlei Bauru (SP) como titular, a oposta Tiffany, primeira transexual a disputar o torneio nacional, fez 55 pontos em nove sets. Nas mesmas rodadas, a oposta da seleção brasileira Tandara fez 24 pontos em sete sets defendendo o Vôlei Nestlé. Tiffany até 2015 disputava o campeonato holandês masculino. Após cirurgia para mudança de sexo, tratamento para redução da produção de testosterona e consequente liberação da Federação Internacional, disputou a reta final da Liga Italiana A2 pelo Golem Palmi no começo de 2017. Sua participação por lá gerou críticas e até ameaças de recursos na justiça comum pelos adversários. O programa Roda de Vôlei já havia levantado a questão da participação de Tiffany entre as mulheres num esporte em que a potência muscular predomina e decide. Apoiados na opinião d