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A educação e a ética


 

A educação e a ética

Os exemplos se multiplicam para desmentir aqueles que acreditavam numa humanidade mais solidária e valorosa pós-pandemia. O caso das vacinas de água ou não aplicadas nos primeiros idosos e a inclusão voluntária de fura-filas ou profissionais da saúde que não estão na linha de frente do combate ao coronavírus entre o grupo prioritário é apenas uma pequena prova da mediocridade ética em que a humanidade mergulhou há muito tempo – segundo Yuval Harari, em seu notável Sapiens, há muito mais tempo que pensamos.

A ética deve fazer parte da formação do cidadão desde a Educação Infantil. Não uma disciplina isolada e estanque, mas um tema transversal que traspasse todas as áreas e permeie a trajetória do aluno até e inclusive a universidade. A ética não pode ser uma disciplina, pois ela não pode ser avaliada objetivamente, sua representação é subjetiva e comportamental. Ninguém será ético respondendo corretamente à questão “O que é ética?” ou “Como fulano descreve a ética”.

A ética deve adentrar a consciência do aluno a cada ato pensado, a cada situação que o obriga a recorrer ao julgamento ético para optar por agir desta ou daquela forma. Não sobre o que é certo ou errado, mas sobre o que bom ou ruim, e ampliar a percepção de que o que é bom e ruim extrapola o benefício próprio e se expande para o que é bom ou ruim para um sistema universal de convivência com todas as formas vivas do mundo do qual ele faz parte e é dependente. E cuja sobrevivência depende do encadeamento de ações éticas da maioria de seus indivíduos conscientes.

Infelizmente confunde-se muitas vezes ética com moral. E o moralismo instala-se com suas regras, preconceitos e perigosos desdobramentos cerceadores por instituições que se dizem defensoras dos bons costumes. Ao longo da história nos presentearam com falsas éticas travestidas de moral. Fizeram-nos exaltar símbolos que servem apenas para inflar a exclusão e o distanciamento das pessoas. O ensino da moral é partidário, ideológico, dogmático e serve à adoração do radicalismo, enquanto estimula a segregação dos “morais”.

Por que não deram o nome de Educação Ética e Cívica à fatídica disciplina do regime militar? Por que partidos e políticos se elegem com a bandeira da moral e dos bons costumes e acumulam inquéritos e processos por comportamentos antiéticos em prejuízo da sociedade da qual deveriam representar? Ética ensina valores, moral introjeta normas. A ética é reflexiva, a moral é imposta.

A educação acrítica e técnica que ganha espaço e ameaça se tornar a única saída para um mundo tecnologizado que necessita de profissionais aptos a operar os sistemas modernos é o túmulo da formação ética. O ensino da técnica e a educação para o trabalho, alijada da formação crítica, forma uma massa ignara de manutenção de um sistema social desigual e mantenedor da ordem econômica dominante. Cruel em todas as suas dimensões ao excluir já na escola a possibilidade de ascensão social por meio da educação, o capital absorve sob o pretexto do acolhimento um indivíduo que só saberá operar as novas tecnologias em prol de constantes e crescentes lucros a seus empregadores. Iludidos e alienados pela preciosa estratégia do consumismo tecnológico dispersante, lá vai a humanidade. Aprender técnicas sem ter a ética a lhes amparar é ter em mãos uma arma carregada sem saber as consequências de seu disparo aleatório.

 Vivemos um momento delicado e crucial de urgente mudança. A pandemia não nos ensinou a ser mais humanos, ensinou-nos a cuidar de nós mesmos e daqueles que elegemos como nossos. E deparamos com uma sociedade em que, mais do que antes, as ações serão para beneficiar a nós próprios e aos “nossos”. A consciência social é fundamental para a transformação. Sentir-se parte de um todo que não é visível nem perceptível a muitos é um dos maiores desafios. Como sensibilizar sobre a devastação do meio ambiente, do aquecimento global, do derretimento das calotas polares se não se enxerga o que está a nossa volta, se os seres vivos mais frágeis e necessitados de cuidados prioritários são ignorados? É necessário retomar o fio da compreensão do uni(uno)verso.

Mesmo que se entenda a ética como sendo inata, mesmo que falte a família a contribuir para essa formação, mesmo que a realidade (com a força de sua influência horizontal) interfira insistentemente no aliciamento, mesmo assim, é preciso acreditar que a educação escolar pode, ao menos, nos reconduzir a um caminho menos sombrio.

Uma ética que ensine as crianças a cuidar dos brinquedos dos colegas com o mesmo carinho que cuida dos seus, que regue plantas; que não quebre galhos de árvores nem maltrate animais; que saiba identificar raças, cores, gêneros com a beleza da diferença e não com a aversão da discriminação. Uma ética que não precise coibir a cola, pois a própria consciência vai apontar que o mérito é decorrente do esforço, não da astúcia; que leve o adolescente a não inventar desculpas e mentiras para justificar um erro e passe a aprender com suas imperfeições sem precisar prejudicar o outro para se redimir; que faça escolhas que possam representar ganhos coletivos – coletivo do qual ele é parte – e não individuais. Uma ética que leve o jovem a reciclar o que consome e a escolher seus alimentos e bens de consumo com base na renovação da natureza; que entenda que a água que ele bebe só chega à sua família por causa de um sistema de equilíbrio planetário que transcende seu próprio quadrado. Uma ética que norteie a ação dos universitários na utilização das técnicas aprendidas que, se despirem-se da ética, poderão ser altamente prejudiciais ao equilíbrio social. Uma ética que não permita sequer o titubeio na pressão contra o êmbolo na hora de vacinar um idoso ou um morador de rua.

Uma ética que seja o alicerce futuro das relações humanas, nas quais todos se vejam nos outros e todas as práticas sociais sejam no futuro, por causa disso, reflexivas. E por serem reflexivas, ver-se-ão todos em todos e tudo.

crédito foto: Zinkevych/iStock

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