Pular para o conteúdo principal

O Ginásio do Ibirapuera é merda!

Crédito: Google Maps


    Esta foi a conclusão a que chegou ontem (30) à noite o Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico). Os membros do órgão estadual responsável pela preservação do patrimônio paulista se recusaram a acatar o processo de tombamento do Complexo Desportivo Constâncio Vaz Guimarães, localizado no bairro paulistano do Ibirapuera. Com isso, em fevereiro de 2021 os 92 mil m2 do conjunto serão oferecidos à iniciativa privada para a construção de um shopping center e um hotel.

    A decisão é uma vitória do governador João Doria, que em abril de 2019 alterou por decreto a composição do conselho, aumentando a participação de membros do governo e escolhendo ele próprio os representantes da sociedade civil e das universidades. Parece que os governos descobriram que manipular conselhos é mais fácil para efetivar seus planos do que negociar com parlamentares e debater com a população.

Para ter uma ideia do tamanho físico do complexo, basta verificar no Google Maps que, depois de aproximar ao máximo a imagem, são necessários 10 cliques de aumento para que ele suma. No entanto, para ter noção de sua importância para o esporte e para a cultura paulista (e nacional), o mecanismo de aproximação do aplicativo não é suficiente. E foi exatamente este valor imaterial que foi ignorado pelos conselheiros do órgão.

    Há uma história das principais modalidades esportivas sob o teto do Ginásio Geraldo José de Almeida que em poucas horas virá abaixo pela sanha da especulação imobiliária no ano que vem. Não sabemos se haverá vacina para a Covid-19, mas certamente as retroescavadeiras e tratores estarão a todo vapor para pôr abaixo o nosso Madison Square Garden. Junto com ele irão as piscinas (uma olímpica para a natação e outra oficial para saltos ornamentais) e uma das raras pistas oficiais de atletismo do país. Além de quadras e salas que servem a população e algumas modalidades. Estivesse vivo, o antigo locutor que dá nome ao ginásio soltaria um de seus bordões: “Que que é isso, minha gente?”.

    Os conselheiros desprezaram os Jogos Panamericanos de 1963, a primeira conquista da Liga Mundial de vôlei masculino, o Mundialito de Vôlei de 1982, o Mundial de Clubes vencido pelo Sírio em 1979, três campeonatos mundiais de basquete feminino, o Mundial de handebol feminino de 2011, a Copa do Mundo de Judô de 2011, Campeonato Mundial de Ginástica de 2006, os Harlem Globe-trotters, Éder Jofre, Miguel de Oliveira, Maguila e Muhammad Ali.

    Esqueceram-se os nobres indicados de Doria que lá cantaram Genesis, Van Halen, Metalica, Cyndi Lauper, Julio Iglesias, Lionel Ritchie, A-Ha, Chico Buarque, Tom Jobim, Roberto Carlos, Milton Nascimento e Secos e Molhados.

Não sabem os ilustres defensores do patrimônio que as principais competições do atletismo eram disputadas na pista que viu inúmeros recordes brasileiros e sul-americanos serem batidos. E nem que as piscinas já abrigaram alguns dos nomes mais importantes da natação brasileira e até o supercampeão Mark Spitz.

    Ao descobrir que não tem capacidade para transformar e zelar pela coisa pública, o Estado resolve entregá-lo à iniciativa privada sob a justificativa de enxugar os custos da máquina. Em vez de investir na revitalização do complexo do Ibirapuera, com políticas públicas de incentivo à prática do exercício físico, levando mais pessoas a frequentar as ociosas dependências e oferecer saúde à população, o governo abre licitação para a demolição de tudo. Em vez de formar parcerias com o empresariado para explorar as múltiplas possibilidades de uso do complexo, opta pela agilidade das empreiteiras em solapar a história e a memória.

    Em vez de investir na saúde e numa nova mentalidade esportiva, ergue mais um templo de consumo. Sob o argumento de criar empregos, desconsidera que uma providencial reforma geral também geraria empregos na construção civil, assim como a mobilização de ocupação dos horários e dependências e o incentivo a eventos esportivos é uma das receitas mais certas para a criação de novos postos e oportunidades de trabalho. Tudo isso é ignorado. “Passar a boiada” passou a ser método de governo, por meio do aparelhamento de conselhos.

    O mundo capitalista tem olhos cada vez mais apenas para o que tem preço, não para o que tem valor. E o aparelhamento dos órgãos faz com que o patrimônio valha pelo que pode render de lucro. E assim, caminhamos para a destruição cultural do país. A memória não tem preço, por isso deixa de ter valor aos olhos do capital.

    Onde poderíamos ver João, Maria, Fábio, Inês correndo, nadando, saltando teremos Zaras, McDonald’s, Havans e Outbacks. Não é uma troca inteligente no longo prazo e na formação de uma nação.

    Um dia antes, Doria pediu a ajuda das federações esportivas para pressionar o Condephaat a negar o tombamento. Entre as que cederam ao apelo do governador está a Federação Paulista de Voleyball. Com sede nas dependências do próprio Complexo, é estranho que a FPV tenha apoiado a demolição, afinal ficaria teoricamente sem sede. Ou será que não? O estranhamento é ainda maior por representar no estado o esporte que tanto fez uso dos dois ginásios do complexo e tantas histórias tem impregnadas nos assoalhos de ambos. Ainda mais por parte de um presidente que está no poder há mais de 40 anos e viveu tudo isso na pele. Estranho...

    Tempos sinistros de apagamento das memórias e de boiadas...

Comentários

  1. Uma pena realmente, ainda mais pelo serviço feito com aulas e apoio para tantas federações que se calaram em especial do volei. No novo projeto tem uma arena multiuso, o que ela contempla de esporte, se sabe?

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Ainda não, mas será apenas uma arena nova, sem a preservação das instalações para a população e que servirá, provavelmente, apenas a grandes eventos.

      Excluir
  2. Nossa!!! Cada vez mais decepcionada com os governantes!!! É cada tombo que o esporte leva.... Sem contar os atletas, a torcida e todos envolvidos neste GIGANTE.... que sempreeeeee nos emociona quando entramos... Aquele friozinho na barriga, a ansiedade e as alegrias q nos proporcionou.... Triste realidade de um país onde só o futebol tem olhos...$$$$

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Resposta ao texto "Eu não gosto de vôlei", em Blog do Menon

Caro, Menon, Em seu post de hoje, você despertou uma boa dose de ira dos apaixonados pelo vôlei. No papel de comentarista e técnico do esporte, acho-me no direito de entrar na discussão, não para atacá-lo – como alguns fizeram –, afinal defenderei sempre o direito à opinião e à expressão das preferências particulares, sejam elas quais forem. Mas ultimamente as pessoas têm se valido de justificativas apressadas para fundamentar seus desgostos. Pela pouca familiaridade com o objeto de desagrado, acabam sendo superficiais e equivocados. Vou me ater a pontos que considero pouco plausíveis em sua busca por tentar explicar porque não gosta de vôlei e me abster de comentar outros que se referem a opiniões e pontos de vista próprios. Primeiramente, o fato de o vôlei ter campeonato todo ano. A Liga Mundial é talvez o quarto torneio entre seleções em importância no calendário internacional, por isso é anual. Antes dela, há os Jogos Olímpicos, o Campeonato Mundial e a Copa do Mundo, ...

Coração e competência

Crédito foto: CBV A seleção brasileira de vôlei dispensou a calculadora e fez as duas melhores partidas do Grand Prix na última sexta-feira (21) e, principalmente, ontem (23). Enquanto muita gente fazia contas e duvidava da capacidade de jogadoras e comissão técnica, elas mostraram que ainda há lenha para queimar debaixo da brasa que sobrou sob as cinzas da Rio-2016. Duas condições interdependentes do vôlei serviram para impulsionar a equipe: quem não é bom em determinado fundamento precisa criar sua identidade em outro; e não dá para ser competitivo com um fundamento que esteja abaixo do aceitável. O sistema defensivo se aprimorou na defesa e o contra-ataque contou com uma dose reforçada de paciência e malícia, enquanto a recepção, que não é um primor, comportou-se dentro de um nível aceitável e não permitiu que o adversário se valesse de tal fragilidade. Com um rendimento invejável no bloqueio, as comandadas de José Roberto Guimarães se superaram contr...

O fator T

O fator T T de Tiffany, de transexual, de testosterona Apesar do recesso de fim de ano, a Superliga feminina de vôlei continuou nas manchetes. Nos dois últimos jogos, em que defendeu o Vôlei Bauru (SP) como titular, a oposta Tiffany, primeira transexual a disputar o torneio nacional, fez 55 pontos em nove sets. Nas mesmas rodadas, a oposta da seleção brasileira Tandara fez 24 pontos em sete sets defendendo o Vôlei Nestlé. Tiffany até 2015 disputava o campeonato holandês masculino. Após cirurgia para mudança de sexo, tratamento para redução da produção de testosterona e consequente liberação da Federação Internacional, disputou a reta final da Liga Italiana A2 pelo Golem Palmi no começo de 2017. Sua participação por lá gerou críticas e até ameaças de recursos na justiça comum pelos adversários. O programa Roda de Vôlei já havia levantado a questão da participação de Tiffany entre as mulheres num esporte em que a potência muscular predomina e decide. Apoiados na opinião d...